Depois de ter perdido a mulher, a filha e a irmã em um desabamento, Manoel resolve largar o interior da Bahia e partir para a cidade grande. Chegando na rodoviária do Tietê, fica abismado. Era Páscoa e todas as propagandas falavam sobre isso. Começa a puxar assunto com um outro homem que por lá passava.
- É, você vê, tudo gira pelo dinheiro. Todas estas datas foram inventadas para se gastar.
O outro homem em questão é Justino, que no dia seguinte partiria para o Mato Grosso para um acampamento dos sem-terra.
- Verdade, o imperialismo yankee criou dia das mães, dia dos pais, dia das crianças, Natal, tudo para ganharem dinheiro acima dos trouxas. Precisamos fazer algo.
E Manoel e Justino começam a trocar uma idéia em comum. Desmoralizar as festas de final de ano, pois acreditavam ser o pico do consumismo. A discussão se tornou tão calorosa que juntou curiosos e interessados naquela gritaria. Manoel se zanga.
- Ei, o que vocês estão olhando? Acharam graça? Daqui a pouco, voltarão para suas casas, viverão suas vidinhas medíocres e falarão que um louco quer fazer a revolução. Não precisamos de vocês! Xô!
Todos saíram, só restando dezesseis incautos.
- Podemos nos ajuntar? ? pergunta Dario Noblinsky, agricultor paranaense.
- Vocês querem nos ajudar a desmoralizar o Natal dos banqueiros e filhinhos de papai? ? perguntou Justino.
Eles aceitaram e foram se reunir no shopping da estação. Roney & Ronaldo, irmãos gêmeos que desde os 11 anos formaram uma dupla sertaneja fracassada em Goiás, estavam por lá.
- A idéia é a seguinte ? explicou Manoel ? vamos pegar um albergue sustentado pelos banqueiros e fraudar os documentos, principalmente as faturas.
- E como faremos isso? ? perguntou Edson Matsuda, um empresário falido de Mogi das Cruzes.
- Simples: vamos invadir durante a noite de Natal, enquanto todos estiverem ocupados com seu consumismo yankee. Faremos isto pelos fundos.
Nisso a dupla se aproxima e Roney diz:
- E conheço um abrigo mantido pelo prefeito da cidade com o dinheiro público. Mas na porta fala que é dessas ONGs.
Eles se entreolham e Manoel diz:
- Sejam bem-vindos à nossa ?sociedade secreta?. Seremos ?O Código dos Vinte?.
O Código dos Vinte era composto por Manoel, Justino, Dario, Edson, Roney & Ronaldo, Jorge Maicon, o mais novo da gangue e o mais revoltado, principalmente por causa do nome; Tenório, imigrante equatoriano; Venâncio, ex-líder comunitário descendente de quilombola do Alagoas e expulso por mau comportamento; Ahmed Jafari, ex-comerciante do Bom Retiro, que decidiu largar o negócio por causa do Natal, Cirilo, carpinteiro recém-casado com Dorinha; Josué, ex-jogador de futebol afastado por terem descoberto um gato; Fabrício, analista de sistemas ateu; Waguinho, bicheiro procurado por traficantes no Rio e atendendo pelo nome de Juarez; Ednardo, ex-pastor evangélico; Antônio José, o Tozé, que tinha acabado de ser demitido da lanchonete da rodoviária; Almeida, caminhoneiro; Luciano, pescador santista que perdeu seu barco na última tempestade e subiu a serra para tentar algo; Marcos, bancário portador de alopecia; e Kawã, filho de hippies que largou a sua ?comunidade? em busca do ?seu eu?. Vinte histórias diferentes que se juntam para o mesmo motivo. Unidos, criaram regras e normas. Reuniriam-se uma vez por mês até dezembro, e logo após toda semana até o dia 23 quando colocariam o plano em ação. Seu cumprimento seria o ?Badauê!?, e todos andariam com um corte na sobrancelha direita, como Manoel, que tem essa falha desde os nove anos, quando caiu de bicicleta. Marcos, por sua vez, usaria caneta hidrográfica no lugar.
Como todas as reuniões foram longas, não daria para descrever tudo aqui. Então vou utilizar um recurso comum em últimos capítulos de novelas da Globo.
Alguns meses se passaram e chegamos em dezembro. Muita mudança teve. Cirilo descobriu que vai ser pai este mês. Tozé arranjou e perdeu outro emprego.
O plano estava armado. O Código dos Vinte chegará na manhã do dia 24 em seu QG e seguirão andando para a instituição, devidamente escondidos por lençóis. Manoel estaria a cavalo e Justino, a jegue. Os dois invadiriam pelos fundos e colocariam notas frias elaboradas por Fabrício e Josué. Roney & Ronaldo tocariam para distrair as assistentes sociais. Ahmed trouxe consigo três potes de sua antiga loja contendo o plano B, que seria invasão por frente mesmo. Jorge Maicon levou um sinalizador caso acontecesse algo com o grupo. O restante ficaria à espera, caso acontecesse algo com os outros.
Na véspera da ação, Cirilo chegou desesperado para Manoel:
- Manoel, minha mulher vai ter nenê esta semana. Ela está indignada que eu vou ter que abandoná-la para esta ação.
Justino olhou feio, mas Manoel se lembrou que não esteve presente no parto de sua filha, e do sofrimento daquele dia do soterramento. Amoleceu o coração e disse:
- Tudo bem, pode levar a Dorinha.
No dia seguinte, de tarde, todos saem à ação. Manoel e Justino foram à frente. Luciano trouxe sua rede, a última lembrança daquela tempestade que acabou com seus sonhos. Venâncio e Dario carregam os potes do Ahmed. Waguinho, ou melhor, Juarez, leva consigo um lençol branco e preto manchado, com o emblema do Botafogo. Dorinha leva o lençol azul dado por sua mãe de presente de casamento. Cirilo, por causa de um princípio de trombose, tem que andar descalço e mancando com um cajado improvisado. Roney & Ronaldo levam juntos lençóis brancos. E todos seguem rumo a seu plano.
Enquanto isso, na instituição, Ana Cláudia recebe um telefonema:
- Instituto Luz, boa tarde?.... Sei.... entendo..... E não tem como vir alguém extra?.... Sei ..... Tudo bem, eu vou ver o que eu posso fazer ...... Boa tarde. Patrícia, nós temos problemas!
- Que houve?
- O grupo de teatro que ia fazer o auto de Natal está preso no aeroporto de Congonhas, e o vôo deles tem previsão de chegada às 23:00 em São José do Rio Preto. Com mais três horas de estrada, as crianças já estarão dormindo. O que vamos fazer?
Patrícia virou e teve uma idéia:
- Tem uma fazenda aqui do lado que tem uma capelinha onde sempre fazem encenação antes da Missa do Galo. Podemos levar as crianças para lá.
- Mas não é muito longe? Pode haver bandidos por lá.
- Não, fique tranqüila, que o caminho é iluminado.
Enquanto elas decidiram, Dorinha, no caminho para o abrigo, que passava por esta fazenda começa a sentir as dores do parto. Cirilo se desespera.
- Gente, vamos parar por aqui. Minha mulher vai ter nenê!
- Não tem nenhum médico por aqui? ? pergunta Tozé.
- Cara, você é louco? Vão achar e vão prender a gente! ? grita Jorge Maicon.
- Bem, o parto tem que ser feito por nós mesmo, o que acha, Cirilo? ? pergunta Edson.
- Na minha mulher, só eu mexo! ? e tira o lençol que o cobria para começar a fazer o parto.
- E o que nos facemos? ? pergunta Tenório
- Sei lá, disfarça. Roney, Ronaldo, tocam uma música.
E eles começam:
?Nana nenê que a cuca vem pegar
Papai foi à roça, mamãe foi passear...?
- Bela música para se tocar aqui. ? ironizou Almeida. ? E se eles nos descobrem?
A criança nasce, é uma menina! Nisso já estava anoitecendo. Kawã pega o sinalizador e lança para avisar o Manoel e Justino, que estavam quase chegando e colocando o plano em prática. Por causa do aviso, tiveram que voltar correndo.
Ana Cláudia e Patrícia estão saindo com as crianças e vêem o sinalizador.
- É a estrela guia! ? exclama uma das crianças.
- Deve ter acontecido algo. Vamos até lá. É caminho para a capelinha ? diz Patrícia, que vê um cavalo e um jegue em direção ao sinalizador.
E no local, Luciano ajeita um matinho e coloca em cima sua rede de pesca para colocar a criança. Ednardo pergunta:
- Não tem outra música não para cantarem? A criança está chorando, vão ouvir a gente!
E Roney & Ronaldo se entreolham e lembram da única música que sabiam de cor dos tempos que cantavam em procissões em Goiás.
?Ó Deus salve o oratório
Ó Deus salve o oratório
Onde Deus fez a morada,
Oi, ai, meu Deus
Onde Deus fez a morada, oi, ai...?
Nisso, Manoel e Justino chegam, e logo após Ana Cláudia, Patrícia e as crianças do abrigo, que olham a cena abismadas:
- Gente, é o presépio!
Exatamente, uma espécie de presépio montado ?ao acaso? por pessoas que estavam dispostas a acabar com o Natal das crianças, mas que ao contrário, ajudaram a construir o Natal delas. Uma das crianças aponta para Dorinha, Cirilo e o nenê e exclamam:
- Olha, é Maria, José e o Menino Jesus!
- Olha, são os três reis magos ? outra aponta para Dario, Ahmed e Venâncio.
- Veja, quantos pastores! E os anjinhos cantam ? apontando para Roney & Ronaldo.
- Tem cavalinho, tem burrinho, tem vaquinha ? apontando para Waguinho/Juarez, tão escondido no seu lençol que nem poderia ser enxergado seu rosto.
O Código dos Vinte se entreolha e vê que sem querer querendo, e muito pelo contrário, eles, que queriam estragar a festa por causa do prefeito da cidade, percebem o brilho no olhar daquelas crianças ao verem aquilo se transformar em um presépio e até acabaram por entender todo aquele significado. Ana Cláudia pergunta para Dorinha:
- Vocês são de algum grupo de teatro?
Dorinha fica corada e nem sabe o que responder, pois qualquer palavra colocaria a reputação daquele grupo por água abaixo. Manoel responde por ela:
- Não, não somos. A gente tinha até agora uma outra idéia de Natal, vendo todo aquele consumismo yankee, de pessoas que nem sabem mesmo o que é de verdade o Natal, como vimos hoje.
- Pois bem. Não querem passar o Natal com a gente? ? pergunta Patrícia.
Os outros vinte concordaram. Entenderam que o Natal não é aquele consumismo yankee, que o consumismo foi exacerbado pelo sistema capitalista selvagem para ofuscar o verdadeiro sentido do Natal. E termina o código dos vinte e Dorinha, depois disso, dá o nome ao nenê de Natália.
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